SOBRE O MARIGHELLA DE WAGNER MOURA

Diego Moschkovich
3 min readMay 10, 2021

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*contém spoilers*

Esse fim de semana vazou, para a alegria da esquerda brasileira, o tão esperado ‘Marighella’, roteirizado e dirigido por Wagner Moura e com o fenômeno Seu Jorge no papel-título. Assisti, é, claro, ávido, ao primeiro filme blockbuster que se propôs a apresentar, de maneira positiva Marighella, um dos mais importantes lideres populares brasileiros do século XX.
A primeira coisa que quero dizer é esta: é triste demais ver como esse filme continua sendo censurado pelo governo federal, e que trata-se de uma reivindicação histórica importatíssima da figura de Carlos Marighella no mainstream da indústria cultural brasileira. Isto posto, digo que fiquei extremamente decepcionado com a obra. Talvez seja uma questão de expectativa frustrada, mas queria fazer algumas considerações pessoais:

a) Não gostei da escolha dos episódios para a composição do roteiro. Moura foca-se no período da ditadura militar, o que é bom, mas escolhe estritamente episódios onde Marighella está envolto em tarefas práticas da organização das ações armadas. As cenas são interessantes, mas, sem contraponto, o filme não constrói o ‘líder popular da resistência’ anunciado pelo letreiro inicial. Vemos, ao contrário, um comandante limitado ao cotidiano da guerrilha: aspecto importante, mas que a biografia de Mário Magalhães consegue extrapolar muito bem.

b) A escolha pela chave dramática relega a ditadura civil-miltar a um plano de fundo difuso sobre os quais os personagens agem, a partir de suas próprias convicções (um alô pro Gianfrancesco Guarnieri, que está nos assistindo ali do fundo!). Se funciona para criar uma casca de humanidade para os personagens (e aqui, de novo, Seu Jorge merece todos os prêmios que houver), transforma dinâmicas históricas em decisões pessoais, e vai quase ao ponto de retratar a ALN inteira (que chegou a ter, por alto, mais de 6 mil membros) como um grupelho armado e de sonhadores resistentes, porém inconsequentes. Essa escolha, além disso, leva à ficcionalização de algumas passagens para o melhor desenvolvimento do drama. Assim, Zilda Xavier Pereira (quem lembrou disso foi a Ave Terrena) — um dos cérebros da ALN, companheira de Marighella e uma das únicas a organizar a própria fuga dos calabouços do regime — é transformada numa passiva mãe de classe média, que reprova Marighella por levar a filha à luta armada.

c) Marighella, assim, é o único personagem histórico que aparece. Os outros, são baseados. A guerrilheira jovem que o acompanha, por exemplo, é claramente a Iara Xavier Pereira (filha de Zilda), que gravou a mensagem que foi tocada durante a ocupação da Rádio Nacional. Se, no caso dos guerrilheiros, a opção é justificável, ao concentrar a política da ditadura na figura de um vilão (Lúcio, interpretado por Bruno Gagliasso, uma mistura de Ustra com Fleury, talvez?) isenta-se de dar nome aos bois e de mostrar a ditadura como uma forma de governo. A impressão é que a linha dura é fruto das decisões do delegado, que inclusive, chega ao absurdo de querer “dar a linha” nos americanos. O que como sabemos, não faz sentido nenhum.

d) A suavização de certas coisas parece injustificada demais. Sabemos que ao ser preso no cinema, por exemplo, Marighella gritou: “Viva a revolução!” (veja-se seu livro ‘Por que resisti à prisão”). No filme, Seu Jorge grita “Viva a democracia”. O reiterado uso apaixonado do termo ‘patriota’ em alguns casos, ecoa muito mal nos dias de hoje.

e) Nada, absolutamente nada justifica retratar a Clara Scharf como a Sra. Marighella, esperando solitária seu marido voltar da guerra — vivo ou morto.

f) Por fim, senti muita vergonha daquela cena final, onde os guerrilheiros da ALN cantam o hino nacional com lágrimas nos olhos. É verdade que revinidcava-se um patriotismo tático, necessário dentro da estratégia revolucionária encampada com a OLAS, mas mostrar guerrilheiros comunistas usando o hino nacional como mística interna (desculpem o anacronismo), foi a gota d’água, depois de todo o resto.
É isso. Não queria deixar passar a oportunidade de tecer esse comentários. Dito isso, é um filme necessário, e precisa ser lançado oficialmente e assistido e discutido pelo maior número de pessoas imediatamente.

10/05/2021

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